Uma das grandes preocupações tanto na saúde pública quanto na saúde privada é o crescente número de ações na Justiça, tornando a saúde uma grande porta para a judicialização. Nos últimos anos há cada vez mais liminares concedidas no país: de 2008 para cá houve um crescimento em torno de 130% no número de ações, obrigando as empresas e as operadoras de saúde a realizarem procedimentos que nem sempre estão previstos nos contratos dos beneficiários. Isto tem causado um perigoso desequilíbrio no mercado.
Quando falamos de contratos e regras, o não cumprimento dos mesmos ameaça de forma quase que insustentável o equilíbrio econômico e desta forma acaba levando cada vez mais pessoas a utilizar o SUS. Atualmente, temos cerca de 47 milhões de pessoas sendo atendidas pelo setor privada e mais de 200 milhões que utilizam os serviços públicos de saúde. Então de uma forma ou de outra, estamos tratando aqui do conceito de mutualismo.
Nas últimas crises econômicas e agora na pandemia o mercado de saúde suplementar perdeu mais de 5 milhões de beneficiários. Aqui temos o primeiro grande impacto, menos pessoas para diluir o risco. Menos pessoas para repartir de maneira proporcional, logo, maior efeito nos custos. Somado a isso, as instituições de saúde começam a colocar em suas previsões os futuros impactos jurídicos. O desiquilíbrio jurídico fica ainda maior, pois torna as incertezas de coberturas extracontratuais em certezas coletivas. Todos pagarão por algo que não utilizarão.
Alguns dos temas mais polêmicos que vão contra as regras contratuais são:
– Cláusulas de reajustes contratuais, principalmente os relacionados a mudanças de faixas etárias;
– Reajustes para pessoas acima de 60 anos em produtos coletivos empresariais;
– Casos de demitidos e aposentados em produtos custeados integralmente pelas empresas contratantes;
– Fornecimento de medicamentos, principalmente aqueles que não têm indicação para o tratamento solicitado, off label, ou não aprovados pela Anvisa;
– Contratos anteriores à Lei 9656/98, com recusa de coberturas para doenças e lesões preexistentes;
– Cirurgias desnecessárias.
Não podemos deixar de ficar atentos à importância deste crescente número de ações. Observar que da mesma forma que temos pessoas usando a Justiça para benéfico próprio temos também que entender que o que está em jogo é a saúde das pessoas. Autorizar ou não autorizar um determinado procedimento pode ser a diferença entre a vida e a morte e é humano que alguém tente tudo que estiver ao seu alcance para ser atendido, ainda que as condições do plano não contemplem aquele determinado atendimento.
Parte importante das ações diz respeito a pedidos de liminares para que o plano arque com atendimentos que por alguma razão são ou foram negados. Sem dúvida, várias destas situações envolvem negativas indevidas, sendo um porcentual decorrente de erro de avaliação do caso; outro, de falta de caixa da operadora para fazer frente aos custos num determinado período; e outro porque aquela determinada operadora não é séria.
Mas precisamos de um judiciário que entenda que existem também situações em que o procedimento não está coberto. Nesses casos, quem arca com o pagamento, fruto da liminar, não é a operadora, mas todos os outros segurados, já que, no final do exercício, a operadora fará a soma das despesas e rateará os pagamentos indevidos no preço cobrado de todos os participantes. Lembrando apenas que ninguém discute que recorrer ao judiciário é um direito constitucional.
Porém, quando falamos de decisões judiciais, não se pode perder de vista a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das operadoras dos planos de saúde. As contribuições realizadas por empresas e consumidores devem guardar relação com os respectivos riscos gerados ao grupo segurado ou beneficiário, sob pena de prejuízos a toda a sociedade, por inviabilização do mercado de saúde suplementar.
Enfim, o caminho, embora longo, vem sendo trilhado para as melhores práticas, seja pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio das Jornadas de Direito da Saúde, seja pelas Cortes Estaduais, e pelos Núcleos de Apoio Técnicos (Nats) e outros.
Por se tratar de um segmento notadamente complexo e altamente regulado, é fundamental que a ANS, as entidades representativas das operadoras e dos consumidores e especialistas do campo jurídico participem ativamente de debates, em especial perante o STJ. Precisamos buscar o maior conhecimento da área para poder intervir sem que se crie conflitos e que possamos todos usufruir de um sistema de saúde mais justo e sustentável.
* Por Charles Lopes, sócio-diretor da B2Saúde Consultoria