Ultima atualização 18 de setembro

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Caso Césio 137 deixa lacuna a ser preenchida no setor

Tragédia radioativa completa 30 anos e até hoje não afetou o mercado segurador. O que pode ser feito a partir de agora?
Radioatividade é descoberta por um físico da cidade no dia 29 de setembro. Começam os trabalhos de descontaminação dos locais que abrigaram o Césio. Crédito: Luiz Novaes, Folhapress
Radioatividade é descoberta por um físico da cidade no dia 29 de setembro. Começam os trabalhos de descontaminação dos locais que abrigaram o Césio. Crédito: Luiz Novaes, Folhapress
Crédito: Luiz Novaes, Folhapress
Crédito: Luiz Novaes, Folhapress

 

Quando dois catadores de lixo encontraram um aparelho de radioterapia abandonado irregularmente no antigo Instituto Goiano de Radioterapia e o venderam a um ferro-velho acreditando ser apenas uma sucata, não imaginavam que ali davam início ao maior acidente radiológico mundial fora das usinas nucleares. O caso Césio 137, ocorrido em Goiânia, completa 30 anos em setembro e até hoje deixa traumas que dificilmente serão apagados.

“O clima era de pânico geral não só em Goiás, mas também em aeroportos, hotéis e cidades por onde passassem os goianos”, lembra o corretor de seguros Marcos Mariath Rangel, que na época ocupava a diretoria regional de uma seguradora. Instalada no Setor Aeroporto, bairro onde ocorreu o acidente, a sucursal da companhia ficava em frente ao Ginásio de Esportes, local onde foram examinadas as pessoas que de alguma maneira tiveram contato com o Césio, seja por meio de outras pessoas ou locais irradiados.

A cápsula de césio 137 foi aberta pelos funcionários de um ferro-velho. Atraído pela coloração azulada brilhante, o dono do estabelecimento levou o elemento para dentro de casa e mostrou o “pó mágico”, como foi batizado, a familiares e amigos. Em questão de horas surgiram as primeiras contaminações e, dias depois, os primeiros óbitos. Oficialmente foram registradas quatro mortes,número contestado pela Associação de Vítimas do Césio 137 (AVCésio), que afirma ser difícil mensurar o número de vítimas – muitas desenvolveram problemas de saúde anos depois –, mas estima mais de 100 vítimas fatais e cerca de 1.600 pessoas afetadas pela exposição ao material.

Passadas três décadas, os personagens dessa história ainda lutam contra o preconceito e se queixam da omissão do estado quanto à prevenção e ao atendimento adequado, apesar da justiça ter determinado que o governo estadual prestasse auxílio aos pacientes e familiares em até terceiro grau. Mas como o seguro poderia ajudar neste caso?

Efeitos estagnados

O acidente ocorreu quando o seguro ainda era incipiente no País. Sendo assim, naquela época não repercutiu de maneira acentuada no setor, até porque não existia nenhum tipo de cobertura securitária para a situação.

É fato que a legislação nacional e as medidas preventivas avançaram de lá para cá, mas os efeitos da tragédia continuaram estagnados quando são analisados sob a ótica do mercado segurador. O que era uma oportunidade para se iniciar discussões importantes, não evoluiu. Até hoje, praticamente todas as apólices de seguros do Brasil excluem os riscos nucleares de qualquer natureza, fazendo com que eles fiquem fora do radar dos subscritores das seguradoras e dos corretores.

Oficialmente foram registradas quatro mortes, número contestado pela AVCésio, que estima mais de 100 vítimas fatais e cerca de 1.600 pessoas afetadas pela fonte radioativa. Crédito: Carlos Costa, O Popular

“A larga utilização de material radioativo é encontrada em vários segmentos,nos processos industriais. De qualquer forma, o risco continua excluído nas apólices dos seguros de property, RC, vida etc.”, afirma o advogado e consultor Walter Polido. Ele lamenta que o mercado segurador nacional atue desta maneira em relação a outras ocorrências catastróficas, em que não se pontua ou se cria mecanismos que possam modificar o padrão existente, e cita como exemplo as mudanças climáticas e a poluição ambiental.

No primeiro caso, enquanto seguradoras e resseguradores mundiais se juntam aos centros acadêmicos financiando projetos de novas tecnologias e buscam medidas preventivas de riscos, por aqui o tema está praticamente estagnado. Já no segundo, Polido coloca os Estados Unidos no centro da discussão. Na década de 1980, mesmo diante de problemas jurídicos e judiciais, o país deixou de operar com o risco de forma primária e representada por cláusula adicional aos seguros de RC Gerais e criou apólices específicas de Seguros Ambientais (stand alone), com coberturas amplas e nomenclatura técnico-jurídica adequada. O Brasil, por sua vez, ainda adota o mesmo padrão praticado pelos norte-americanos há mais de três décadas, apesar de todos os problemas que também surgem diante de sinistros catastróficos, como o da mineradora Samarco, em Mariana (MG), ocorrido em novembro de 2015.

“As empresas que compõem o mercado segurador privado ficam reféns do Estado e operam dentro dos limites diminutos de coberturas, adotando clausulados padronizados. Mesmo as seguradoras estrangeiras que aqui operam não modificam os padrões de subscrição existentes”, critica.


 

O seguro é dinâmico. A técnica e o pensamento não podem se perpetuar no tempo e deixar os riscos emoldurados por clausulados obsoletos.”

Walter Polido, advogado e consultor


Tema delicado

Nem todos abordam ou gostam de falar sobre o cenário estagnante, mas ele é real e deve ser enfrentado abertamente. “Precisamos, sem alarde, conscientizar pessoas, empresas e governos sobre os riscos e suas consequências, bem como criar produtos securitários para cobrir danos e responsabilidades civis”, defende o corretor Marcos Mariath Rangel.

Como discutir um assunto tão delicado é a grande questão. Não se trata mais do que deveria ter sido feito em setembro de 1987, mas sim do que poderá ser feito daqui para frente. Advogado da área de seguros e coordenador acadêmico de cursos e palestrante da Escola Nacional de Seguros, Sergio Barroso de Mello defende que a melhor maneira de se fazer evoluir o setor de seguros de um país é dar-lhe liberdade de formulação negocial. Assim, privilegia-se aquilo que o segura-dor tem de melhor: a criatividade.

“Na medida em que os órgãos reguladores se preocuparem mais com a solvência econômica das empresas e menos coma formulação de seus produtos, certamente o maior beneficiário será o consumidor, que terá acesso garantido a produtos capazes de atender as suas demandas de forma específica e em condições econômicas justas, em razão da competitividade dos mercados abertos e pouco regulados no campo contratual”, explica.

Produtos da natureza do césio 137 são extremamente gravosos e aumentamo risco exponencialmente, razão pela qual são costumeiramente excluídos também nos seguros ambientais. De acordo como especialista, a única forma de possibilitar cobertura para esse risco seria a Superintendência de Seguros Privados (Susep), órgão que fiscaliza o setor, liberar tais coberturas e deixar ao critério do mercado a sua aceitação e a respectiva taxação do risco. “Para isso será preciso alterar a Circular nº 437/2012, dada a sua velada vedação”, diz Mello.

Já a gerente Placement da Marsh Brasil, Katia Papaioannou, lembra que a questão relacionada a danos ambientais ainda é muito focada e difundida no âmbito corporativo, embora existam leis, decretos, normas e tópicos constitucionais sobre a responsabilidade ambiental particular. “A responsabilidade civil por danos ambientais, seja por lesão ao meio ambiente propriamente dito (dano ambiental público) ou por ofensa a direitos individuais (dano ambiental privado), é objetiva, fundada na teoria do risco integral. Mesmo com esses dispositivos a fiscalização ainda é ineficiente, o que expõe as pessoas e o meio ambiente a possibilidade de desastres ambientais como este e outros recém ocorridos”, diz.

Contudo, é possível conceder cobertura para danos a terceiros decorrentes de resíduos radioativos de baixa atividade – em que não há a necessidade de medidas protecionais contra radiações impostas pelos órgãos da saúde pública e do meio ambiente, mas depende de aprovação da seguradora.

“No Brasil temos um número limitado de seguradoras operando nesta modalidade. O mercado restrito dispõe de clausulados amplos (padrão internacional), capacidade para contratação de limites elevados e condições competitivas, mas ainda assim a adesão para contratação de apólice é baixa, apesar deste seguro já ser considerado uma ferramenta importante para gestão ambiental e gerenciamento de áreas contaminadas e de efetivamente minimizar a exposição a riscos, prevenindo perdas e a descontinuidade dos negócios.”

Com a palavra, a Susep

Procurada pela Revista Apólice, a autarquia afirma que a atividade securitária é regida, primordialmente, pelo Código Civil; logo, impera na atividade a liberdade contratual naquilo que não contrariar a legislação vigente.

“Por outro lado, a autarquia não determina a exclusão sumária dos riscos nucleares nas apólices de seguros. Essa exclusão é determinada por iniciativa do mercado, de forma espontânea e livre, sem ingerência da Susep. Há inclusive rubrica especial para os riscos nucleares (1872), prevista na Circular Susep nº 535/2016, que tratada classificação dos grupos e ramos de seguros, tendo as seguradoras, dessa forma, a liberdade para criar e registrar produtos próprios de riscos nucleares, junto à Susep”, declara, em nota, assegurando ainda que não verifica demandas provenientes de entidades representativas de consumidores de seguros, bem como das entidades que representam o setor regulado, para debate da questão junto à autarquia.

Condenação dos responsáveis

Nove anos depois da tragédia, três sócios do antigo Instituto Goiano de Radioterapia e um funcionário da clínica foram condenados a três anos emeio de prisão em regime semiaberto por homicídio culposo (quando não há intenção de matar). No entanto, as penas foram trocadas por serviços comunitários.

Também condenadas, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), que deveria fiscalizar o césio na clínica,e o governo do estado de Goiás, foram obrigados a pagar as indenizações às vítimas e a seus parentes.

Lívia Sousa
Revista Apólice

* matéria originalmente publicada na edição 224 (agosto/2017)

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