EXCLUSIVO – A intensa passagem de um ciclone extratropical por São Paulo e outras regiões do Sudeste, na última semana, voltou a expor a vulnerabilidade das grandes cidades brasileiras em meio a uma onda de eventos climáticos extremos. Ventos fortes, alagamentos, queda de árvores e interrupções prolongadas no fornecimento de energia elétrica provocaram impactos que foram além dos transtornos imediatos à população, alcançando a atividade econômica e novamente pressionando de forma direta os setores.
No pico desse último evento, mais de 2,2 milhões de imóveis ficaram sem energia elétrica apenas na capital paulista. Cinco dias após a ventania, ainda havia um número significativo de consumidores com fornecimento instável. Segundo levantamento da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), a falta de energia provocou perdas superiores a R$ 2,1 bilhões em faturamento para os setores de comércio e serviços da cidade entre os dias 10 e 14 de domingo.
As perdas foram mais intensas no setor de serviços, que deixou de gerar cerca de R$ 1,4 bilhão em receitas no período. Apenas na última quarta-feira (10), dia mais crítico do apagão, o setor registrou uma queda estimada em R$ 541 milhões, em um contexto de paralisação parcial de atividades, interrupção de serviços essenciais e dificuldades operacionais generalizadas. O comércio varejista também foi fortemente impactado, com perdas de R$ 267 milhões na quarta-feira e um prejuízo acumulado de aproximadamente R$ 696 milhões até o domingo.
O montante já supera as perdas registradas em outubro de 2024, último grande episódio de interrupção prolongada de energia na capital, quando chuvas intensas deixaram a cidade vários dias sem fornecimento e geraram um rombo estimado em cerca de R$ 2 bilhões para os dois setores.
Embora o impacto econômico mais visível recaia sobre comércio e serviços, eventos como esse também ampliam a pressão sobre o mercado de seguros, especialmente em ramos mais expostos à instabilidade climática, como o seguro auto.
Sinistros extremos no seguro auto
Segundo Marcelo Biasoli, CEO da 123Seguro no Brasil, os principais sinistros relacionados a riscos climáticos extremos no verão envolvem danos causados por alagamentos, queda de árvores, destelhamentos que atingem veículos e impactos provocados por granizo. “Esses eventos costumam gerar desde panes elétricas e danos mecânicos até perdas totais, dependendo da intensidade e do tempo de exposição do veículo”, afirma.
De acordo com o executivo esse tipos de incidente já figuram entre as principais causas de acionamento do seguro auto em determinadas regiões do país, especialmente nos grandes centros urbanos. “O que mudou nos últimos anos foi a frequência e a previsibilidade desses episódios. Fenômenos que antes eram considerados pontuais passaram a ocorrer de forma mais recorrente, o que altera o perfil de risco analisado pelas seguradoras”.
Essa mudança de padrão já se reflete na precificação. Áreas historicamente alagáveis ou próximas a regiões de maior vulnerabilidade urbana tendem a apresentar valores mais elevados de apólice. “O CEP funciona como um indicador importante de risco, pois concentra dados sobre ocorrências anteriores. A tendência é que esse tipo de diferenciação se torne cada vez mais refinado, à medida que as seguradoras ampliam o uso de dados e análises preditivas”, diz Biasoli.
Em meio a esses ocorridos mais extremos, dúvidas sobre cobertura também se intensificam. De forma geral, danos causados por alagamento, granizo e queda de objetos costumam estar cobertos nas apólices compreensivas de seguro auto, incluindo danos mecânicos e elétricos decorrentes da enchente.
Há, no entanto, situações comuns de exclusão. “Ficam fora da cobertura casos de agravamento do dano por uso inadequado do veículo após a submersão, ausência de cobertura compreensiva ou problemas relacionados a desgaste natural e falhas de manutenção”, explica Biasoli. Um ponto sensível é o comportamento do motorista no momento do alagamento. “Ao perceber que a água está subindo, a orientação é desligar o veículo e não tentar dar partida novamente, pois isso pode agravar os danos e caracterizar exclusão de cobertura.”
Em casos de perda total por enchente, quando o evento está previsto na apólice, a responsabilidade financeira é da seguradora, que indeniza o segurado conforme o valor contratado. O poder público, na prática, não participa do processo de indenização do seguro. Eventuais responsabilidades do Estado por falhas de infraestrutura só podem ser discutidas em ações judiciais específicas, fora do contrato.
A maior frequência e severidade dessa crises climáticas já estão incorporadas aos modelos de risco, pressionando o custo do seguro, especialmente em regiões mais expostas. Ao mesmo tempo, segundo Biasoli, há um esforço do mercado para equilibrar preço e cobertura por meio de modelos mais precisos de precificação e segmentação de risco.
Do ponto de vista do consumidor, episódios como o apagão provocado pelo ciclone extratropical funcionam como um gatilho de conscientização. “É comum observar um aumento pontual na procura por cotações logo após eventos climáticos de grande impacto, quando o risco se torna mais visível no dia a dia”.
A digitalização acelera esse movimento. Plataformas online permitem que consumidores cotem e contratem seguros rapidamente, inclusive em momentos críticos, aproximando o seguro da jornada digital do cliente. “Isso amplia a autonomia e a transparência, embora a orientação continue sendo essencial”, diz.
Do evento extremo ao risco sistêmico
Se, no curto prazo, os impactos se materializam em sinistros e indenizações, no médio e longo prazo o desafio é mais profundo. Para André Veneziani, vice-presidente Comercial da C-MORE no Brasil e América Latina, o risco climático deixou de ser periférico e passou a ser sistêmico para a economia. “Empresas e seguradoras estão migrando de análises pontuais para uma abordagem contínua e integrada, que combina exposição física, vulnerabilidade socioeconômica e capacidade de resposta dos territórios”, afirma.
Segundo ele, os modelos tradicionais, baseados fortemente em dados históricos, tornaram-se insuficientes. “O clima deixou de se comportar como uma variável estável. Apoiar-se exclusivamente no passado significa subestimar perdas, distorcer a precificação e comprometer a sustentabilidade técnica das carteiras”, explica.
Nesse novo contexto, a gestão de risco passa a incorporar cenários prospectivos, dados climáticos, informações geoespaciais e indicadores ESG. O objetivo é antecipar impactos, apoiar decisões de subscrição, calibrar a precificação e proteger o capital em um ambiente de incerteza crescente.
A integração dessas diferentes camadas de informação permite identificar onde o risco está se formando antes que ele se materialize. “Dados climáticos e geoespaciais revelam a exposição física a enchentes, secas e ondas de calor, enquanto indicadores ESG ajudam a entender vulnerabilidades sociais, qualidade da infraestrutura e capacidade de adaptação”, pontua Veneziani.
Ao integrar essas informações, empresas e seguradoras conseguem migrar de uma lógica reativa, baseada no sinistro, para uma estratégia preventiva, orientada por dados. Essa abordagem também impacta diretamente a definição de apetite ao risco e a alocação de capital, tornando a precificação mais técnica e aderente à realidade local.
O avanço da sofisticação analítica, no entanto, traz um desafio adicional: o risco de exclusão securitária. Para Veneziani, o problema surge quando a inteligência é usada apenas como ferramenta de restrição. “A mesma sofisticação que identifica riscos pode apoiar o desenho de soluções, como seguros paramétricos, coberturas moduláveis e mecanismos de incentivo à redução de risco”.
Nesse contexto, o seguro deixa de ser apenas um instrumento de transferência de perdas e passa a atuar como indutor de adaptação e resiliência, estimulando investimentos em mitigação e melhores práticas de gestão.
Embora o conceito de ESG tenha avançado rapidamente no discurso corporativo, sua efetividade depende da capacidade de transformar dados em decisões concretas. “Sem inteligência analítica, o ESG tende a se limitar a relatórios retrospectivos. Com dados integrados e visão prospectiva, ele se transforma em uma ferramenta de gestão preditiva”, diz Veneziani.
Essa visão está alinhada ao posicionamento de entidades do setor, como a CNseg, que defendem o papel do seguro como vetor de resiliência climática, atuando antes, durante e depois do evento extremo.
Olhando para os próximos anos, a principal tendência é a transição de modelos estáticos para plataformas de inteligência contínua, apoiadas por inteligência artificial e análise avançada de dados. “Em 2026, o diferencial competitivo estará em quem conseguir integrar dados climáticos, geoespaciais e ESG em modelos preditivos robustos, capazes de antecipar impactos financeiros e apoiar decisões estratégicas”, destaca Veneziani.
A recorrência de eventos climáticos extremos vem encurtando o espaço de manobra do mercado de seguros. Entre perdas bilionárias, pressão sobre a infraestrutura urbana e aumento da sinistralidade, o setor é forçado a revisar modelos, preços e coberturas em um ritmo mais acelerado do que no passado.
Nicholas Godoy, de São Paulo.




