Ultima atualização 23 de fevereiro

Riscos recusados: sinuca de bico ou falta de visão?

Aberto o mercado de resseguros no Brasil, como aconteceu em outras partes do globo, quando se retira o manto protetor do Estado, surgem os excluídos em função da implantação de um sistema mais seletivo. Quando da “campanha” pela abertura, não contaram todas as consequências. A realidade demonstra que os preços mais baixos, os novos produtos, os benefícios cantados em prosa e verso, não são para todos.
Há de se entender que em um sistema de monopólio, todos os caminhos levavam ao único operador autorizado – se preocupava mais com a massa do que com o detalhe. Mais com a floresta como um todo do que com as árvores. Desde que a massa estivesse no azul, não era tão alarmante se alguns setores fossem mais prejudiciais que outros. Não havia uma seleção efetiva de riscos, até porque a aceitação de boa parte do resseguro era de forma automática.
Aberto o mercado, o IRB-Brasil Re como qualquer outra empresa do ramo, é obrigado a fazer uma seleção criteriosa dos riscos que aceita. Não há outro modo, lei da sobrevivência.
Como teria de ser, diversas normas foram editadas pelo CNSP e SUSEP para regulamentar o mercado, e visando a proteção do consumidor. Uma dessas normas, de forma acertada, estabelece prazo para as seguradoras se manifestarem quanto a aceitação (ou não) de riscos oferecidos pelos corretores de seguro, sob pena de, decorrido o prazo previsto, a aceitação ser compulsória.
Por outro lado, findo o monopólio do IRB, as seguradoras se viram na necessidade de celebrar contratos específicos de resseguro com o ressegurador que melhor lhes aprouvesse. E desses contratos constam riscos não aceitos, pelo menos de forma automática. Isso é prática comum no mundo inteiro.
As seguradoras cientes de que certos riscos não são aceitos pelos contratos, mas que, se não tomassem cuidado, poderiam aceitá-los compulsoriamente pelas regras estabelecidas pelas autoridades do setor, passaram a fazer constar dos seus guidelines que tipos de riscos/atividades não teriam (mais) aceitação.
Assim, já há algum tempo escutamos reclamações de determinados setores da economia quanto à dificuldade de obter seguro ou renovar os existentes.
Colocar todas as empresas de uma mesma atividade numa cesta, sem se preocupar em verificar as diferenças entre cada empresa é como acreditar que proprietários de veículos usados são todos iguais, sem considerar o cuidado que cada um tem com manutenção, direção, local de circulação, de guarda e outros detalhes que separam o joio do trigo dentro de uma mesma plantação. Injustiças são feitas quando se generalizam certas decisões. E perdem-se oportunidades de negócio também.
Um problema complementar que se apresentou é o constante do artigo 20 do Decreto-Lei 73/1966 – o seguro contra incêndio (dentro outros listados) é obrigatório por lei.
Empresas que as seguradoras não têm interesse em segurá-las ficaram na chamada ?sinuca de bico?. Querem (ou precisam) contratar seguro contra incêndio, mas não encontram receptividade no mercado de seguro. E a multa prevista no DL-73/1966, atualizada pela Lei Complementar nº 126 de 15 de janeiro de 2007 é sensível:

10% da Importância Segurada ou R$ 1.000,00 (a maior entre ambas)

Aparentemente a questão não é necessariamente de preço (alguém poderia ser prático e aceitar pagar um prêmio equivalente a 10% da importância segurada), mas sim o próprio risco, provavelmente pela severidade da perda em caso de sinistro. Se juntar frequência com severidade então, o assunto se complica. Nessa situação mesmo um preço ?exorbitante? ainda não seria sozinho uma solução para a seguradora. Mesmo porque há um limite para tudo, perante o código do consumidor.
Algo que não se sabe é em um ano quantas vezes uma empresa poderia ser multada por não contratar seguro obrigatório. Deve haver um limite na quantidade de multas, mas se uma única multa já é significativa, não quero saber qual o máximo. Por absurdo, o máximo que alguém estaria propenso a pagar por um seguro seria a soma de multas a que estaria sujeito em um ano. Com um seguro como prêmio de consolação. Mas entendo que a solução não é tão simples.
Como a fiscalização (ainda) não é eficiente, muitos prefeririam literalmente correr o risco de ficar sem seguro. Entretanto, a questão é deixar o ativo da empresa descoberto, fato muito mais grave! ? Uma organização muitas vezes é fruto de vários anos de sacrifício. E não podemos esquecer ? seguros obrigatórios visam proteger a sociedade. No caso de uma empresa se incendiar, a perda para a sociedade é grande, envolvendo empregados e suas famílias, fornecedores e compradores, para ficarmos apenas no óbvio.
O interessante é: ao recusar um risco a seguradora em geral não justifica o seu ato. Esta é uma das reclamações do lado contrário. Parece não haver negociação. Se ao menos, os clientes de muito tempo em uma mesma seguradora fossem comunicados com certa antecedência que os seus seguros não serão renovados, a questão seria menos traumática. À queima-roupa é complicado.
Eventualmente poder-se-ia efetuar uma inspeção no local e se estabelecer as modificações necessárias para o local continuar segurado – alterações razoáveis evidentemente – talvez segregar alguma área da empresa para efeito de seguro, aplicar franquias escalonadas, mudança no layout, instalação de um sistema melhor contra incêndio, aplicar um período de quarentena até que as alterações fossem implementadas. Acredito que nada impeça um acordo particular de intenções entre a seguradora e o segurado, complementar ao contrato de seguro, desde que não contenha nada contrário a lei. As possibilidades são várias. Por que não? – Afinal, tomar risco é a essência do seguro.
Lembro que seguro é movido pelo mutualismo em sua essência. A seguradora, de certo modo, administra as contribuições de todos os segurados para poder indenizar aqueles que tiveram a infelicidade de sofrer eventos danosos. Os riscos mais propensos a danos
com características de severidade (e frequência, o que piora a situação) devem ter condições particulares de gerenciamento e políticas de aceitação, para não onerar mais do que o recomendado a balança entre contribuições e indenizações.
Guardadas as devidas proporções, a situação entre segurado e seguradora seria algo como a inspeção veicular hoje: o proprietário estava tranquilo sem muita preocupação com os efeitos de desgaste do seu carro. Então a lei o obriga a efetuar a inspeção veicular. Vai fazer a inspeção e é reprovado. Quer continuar a circular? – então terá de adequar o seu carro e voltar para um novo exame. A coisa ficou assim. Mas não se poderia proibir a circulação de certos veículos sem dar chance ao proprietário se adequar ao mínimo exigido por lei.
No fundo, o segurado sabe onde o “calo aperta” no seu negócio – onde está o perigo no seu processo – mas estava acomodado com a situação anterior, antes da abertura do mercado de resseguro. Além do que, nenhuma seguradora inspeciona todos os seus segurados, pois não seria economicamente viável. Com a abertura do mercado de resseguro e suas consequências, o retrato mudou. E muito em certas áreas.
Bom, como se resolve essa situação de ?se ficar o bicho pega, se correr o (outro) bicho come??
Ora, não podemos admitir que essa situação ninguém tenha passado ainda em outra parte do mundo, em outras épocas, tão antiga é a instituição do seguro. Esse ineditismo não é possível, pelo menos algo semelhante deve ter surgido e solucionado.
A solução é pesquisar eventuais alternativas encontradas, apelando para resseguradores e brokers multinacionais. Aliás, o mercado de resseguro abriu para quê? Apresentar novas soluções foi uma das razões levantadas!
Se aqui Estados Unidos fosse, uma solução seria as empresas dos setores cujos seguros não são aceitos localmente se unirem e fundarem uma seguradora para justamente poder segurar os riscos recusados pelo mercado. Vale lembrar que dos seguros desejados por uma empresa não necessariamente todos são recusados. Apenas os que apresentam mais prejuízos para a seguradora. Algumas vezes até mais psicológicos, que reais.
Se as empresas concentrarem todos os seus seguros em uma seguradora, pode ocorrer uma boa sinergia. Considerados os seguros de uma empresa como um todo, ela pode ser um bom negócio, embora seu risco em termos de incêndio, por exemplo, possa ser um desastre. Mas até um desastre pode ser minimizado. Há de ter vontade, investimento e, principalmente, gerenciamento de risco.
Pode ser que uma seguradora formada para atender apenas determinados setores eventualmente entre em conflito com o constante da Resolução CNSP nº 224/2010. Porém, se for a única solução para seguros recusados pelo mercado, os órgãos reguladores terão de buscar opções. Eventualmente, o seu controle pode ser pulverizado em ações, ou colocado sob administração de uma entidade autônoma, sem ligação com as empresas que contribuíram para o capital da seguradora. Sempre há uma solução alternativa.
Historicamente falando, não sei se é uma ?lenda securitária? ou não: pelo que contam, nos Estados Unidos criaram no século passado uma seguradora especialmente para assumir os riscos envolvendo amianto/asbestos. Quase um ?boi de piranha? como se diz no interior de Goiás. Ao contrário do previsto, a seguradora evoluiu e hoje é uma das grandes do mercado internacional. Certamente ela fez a sua “lição de casa” e foi além.
No exterior pode existir uma seguradora e/ou ressegurador especializado nos nichos das empresas que não conseguem contratar seguros no Brasil. Não é impossível, visto a diversificação e especialização, por exemplo, que é o mercado londrino. Lá fizeram até seguro contra abdução alienígena e pasmem, com pagamento de sinistro!
Alguma seguradora/resseguradora licenciada a operar no Brasil poderia se interessar em trabalhar em conjunto com tal companhia do exterior, eventualmente podendo exigir garantias financeiras por uma questão de segurança nas operações. Desde que a legislação brasileira permita e haja condições financeiras para tanto, por que não? ? sim, a obediência a lei é primordial, considerando-se que pela Lei Complementar 126/2007, os seguros obrigatórios devem ser celebrados no País.
Outra possibilidade seria política. O governo criar uma seguradora/ressegurador para aceitar seguros refugados pelo mercado, sob termos específicos e diferenciados, e desde que o interessado aceite previamente efetuar melhorias no risco de modo a atingir um mínimo necessário para passar a ser segurável. Isso seria imprescindível, sem o que não haveria como viabilizar alguma coisa.
Se o seguro é obrigatório e não pode ser contratado fora do País, o Governo deve fornecer alguma opção para que as pessoas e empresas cumpram com a lei. Senão, como fica? – no mercado americano, existe um fundo governamental (que varia de estado para estado) que cobre seguros obrigatórios não aceitos pelo mercado privado, observados certos rituais e exigências.
A história é repleta de exemplos sobre riscos complicados que tiveram soluções interessantes. A indústria química é um bom exemplo da condicionante “modificar para poder segurar”. Há muitos anos surgiu no Canadá um programa chamado “responsible care” composto de várias etapas, auditado por empresa independente. O programa previa modificações no site, no gerenciamento de risco, no processo, até nas relações com a comunidade e, principalmente, com a vizinhança. Isso porque o setor é perigoso e tinha consciência que precisava melhorar como um todo. O programa deu certo. No Canadá, empresa química que não tenha implantado e superado as diversas fases do “responsible care“, não consegue contratar seguro. O programa se espalhou pelo mudo. No Brasil ele foi adotado pela Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química) e é de adesão voluntária entre os associados. É um diferencial que conta ponto em diversos aspectos.
O seguro de riscos nucleares é outro. Devido ao risco implícito, tem uma estrutura peculiar, exigindo inclusive a formação de uma espécie um fundo, por usina segurada e por tempo de seguro. Dentro das suas limitações, é o que há.
O seguro de responsabilidade civil da indústria farmacêutica na Europa é obtido através de um pool de seguradoras (Pharmapool) e certamente tem lá suas exigências mínimas. E funciona há muitos anos.
Até mesmo o seguro de transporte aeronáutico nos seus primórdios era um risco não aceitável pelas seguradoras. Atividade arriscada e por isso mesmo ela e os governos criaram mecanismos, condições e exigências para torná-la segurável. Hoje, respeitando sempre as opiniões contrárias, é o meio mais seguro de se viajar.
Como se vê, as empresas que atualmente têm seus seguros recusados têm uma tarefa grande pela frente. Terão de investir e mostrar vontade de modificar seus riscos e processos até que atinjam um mínimo aceitável pelas seguradoras, que poderiam fundar um pool para dar apoio aos potenciais segurados, com a participação de uma ou mais resseguradores se possível. Porque não? Será que boas oportunidades de negócio não estão sendo perdidas, por uma questão de miopia, de simplificação excessiva?
Afinal de contas como diz um ditado chinês, as dificuldades são ótimas chances para crescer.
A questão toda é existir massa segurada, gerando um nível de prêmios que permita a seguradora suportar as perdas, pagar suas despesas e ainda gerar lucro. Senão não é seguro, é filantropia ou assistência social.
Assim, não há necessidade de se reinventar a roda, basta saber onde encontrá-la. É o que fazem as multinacionais e seus programas mundiais.

Atenção: Este artigo reflete o entendimento particular do autor, visando apenas demonstrar que, problemas surgidos em uma parte do globo, possivelmente em outra parte do globo pode existir a solução. Pode, não necessariamente, existe.

*Osvaldo Haruo Nakiri é analista do IRB-Brasil Re

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