Imagine-se como um proprietário ou armador de embarcações marítimas transportando inúmeras cargas de diferentes tipos e naturezas pelo mundo afora. Diante dos mais variados riscos inerentes a essa específica atividade empresarial, que normalmente envolve valores vultosos, torna-se aconselhável, por prudência, contratar apólices de seguros.
Contudo, ao verificar que as coberturas securitárias oferecidas pelo mercado segurador são restritas apenas à proteção de riscos básicos, ou a riscos limitados/insuficientes como, por exemplo, danos restritos ao total de ¾ do casco da embarcação e maquinário (Hull andMachinery) que apresenta natureza de um seguro de danos voltado apenas à embarcação propriamente dita, constata-se que o seguro, por si só,apresenta-se insuficiente para acobertar eficazmente o regular desempenho do transporte marítimo a ser realizado. O que fazer?
Em linhas gerais, foi essa a pergunta feita nos coffeshops ingleses que concentravam o maior número de profissionais atuantes no segmento marítimo de seguros após o grande incêndio que devastou a cidade de Londres em 1666.
A resposta para essa pergunta baseou-se na seguinte premissa: os riscos não seguráveis, incluindo, mas não se limitando, à perda de vidas e danos pessoais à tripulação, passageiros e terceiros à bordo (contemplando doença, morte, resgate, desvio da rota original para salvamento de vidas, substituição de tripulantes, etc.), perdas e danos às cargas transportadas e suas consequências como poluição, contaminação, remoção de destroços, entre outros são grandes demais para serem suportados individualmente por cada proprietário ou armador de embarcação, assim, é preciso que, de alguma forma, ocorra uma dispersão, compartilhamento, pulverização desses riscos entre um grupo maior de indivíduos para que possam vir a ser economicamente suportáveis.
Nessa linha de raciocínio, e parafraseando a famosa frase da obra “Os três Mosqueteiros”, escrita pelo romancista francês Alexandre Dumas, em 1844, “um por todos e todos por um”, onde é possível verificar-se a convergência de interesses entre indivíduos para a consecução de um objetivo em comum, foram criadas associações de “seguros” independentes, formadas pelos próprios proprietários e armadores de embarcações marítimas.
Essas associações, pautadas no princípio securitário basilar do mutualismo e , ao longo do tempo foram reunindo-se de maneira cada vez mais profissional transformando-se em “clubes” que forneciam cobertura de proteção e indenização (Protection AndIndemnity – “P&I”) ao seus membros associados, complementando, assim, os riscos não cobertos pela apólices de seguros tradicionais. É importante deixar registrado que os clubes de P&I não substituem o seguro, mas preenchem fendas até então existentes no mercado segurador suplementando-o.
Segundo narrativa histórica de um dos principais clubes de P&I ora existentes, primeiro surgiu a cobertura de proteção à embarcação (casco e maquinário) e, posteriormente, foi incluída a cobertura referente à responsabilidade civil da carga transportada (indenização), a fusão dessas coberturas em um único produto deu origem a denominação Proteção e Indenização ou Protection and Indemnity – P&I.
Nesse contexto, é possível compreender a natureza jurídica dos Clubes de P&I como associações mútuas e independentes que objetivam conferir proteção de responsabilidade civil atinente ao uso e operação de embarcações marítimas por parte dos seus membros, no que atine aos riscos não abrangidos pelas apólices securitárias tradicionais.
Os principais pontos de diferenciação entre Clubes de P&I e as Seguradoras podem ser sintetizados na forma do quadro ilustrativo abaixo:
CLUBES DE P&I | SEGURADORAS |
Associações
(sem fins lucrativos) |
Empresas – no Brasil constituídas, obrigatoriamente, sob a veste de Sociedades Anônimas “S/A”
(com fins lucrativos) |
Possui Membros
(Proprietários e/ou Armadores de embarcações marítimas que são, ao mesmo tempo, “segurados” e “seguradores”) |
Possui Clientes Segurados
(Não precisam ser necessariamente proprietários e/ou armadores de embarcações marítimas, bastando que possuam legítimo interesse para a contratação do seguro) |
Instituem contribuições “calls”de seus membros | Cobram prêmios dos clientes segurados |
Não há limite para o pagamento de “calls” | O pagamento feito pelo cliente segurado limita-se ao valor do prêmio cobrado com base na declaração de risco originalmente apresentada |
Repartem prejuízos | Pagam Indenizações Securitárias |
Regras contratuais constam dos“Rule Books” dos Clubes | Regras contratuais constam da Apólice de Seguros |
Coberturas complementares ao seguro | Cobertura securitária principal |
Embora independentes, cada um dos 13 principais clubes de P&I atualmente existentes optaram por reunir-se, formando um Grupo Internacional de P&I denominado International Group of P&I (IG) onde subscreveram um acordo internacional que especifica a maneira como seus clubes membros atuarão e competirão entre si, estipulando regras, penalidades, descontos e benefícios diversos aos seus integrantes.
Talvez uma das principais vantagens na subscrição de um clube ao IG possa ser traduzida na possibilidade de acesso tanto a um pooling de repartição de riscos inter-clubes, quanto a um painel de resseguradores, ambos mais robustos, fato que potencializa a capacidade técnica dos clubes individualmente.
Segundo o IG, os clubes de P&I a ele pertencentes provêm cobertura para, aproximadamente, 90% da tonelagem marítima mundial .
Por sua vez, uma das principais exigências de um membro subscritor do IG é a observância ao princípio “pague para ser pago” (pay to be paid), ou seja, na ocorrência de um sinistro coberto é preciso que, primeiro, ocorra a quitação das obrigações do clube perante terceiros para, somente então, reivindicar-se o pleito de reembolso junto aos demais membros (pooling) e/ou aos resseguradores. Cabe acrescentar que esse mesmo princípio pode ser utilizado para que os pagamentos dos calls “contribuições” sejam efetivamente honrados por cada clube.
Normalmente, os clubes de P&I, sejam eles pertencentes ao IG ou não, ofertam coberturas contra os seguintes riscos, todos decorrentes de responsabilidade civil decorrentes de atos acidentais ocorridos durante a utilização da embarcação, ou seja, sem dolo ou culpa grave equiparável:
(i) Indenizações por doença, morte ou danos a tripulantes, passageiros e terceiros a bordo;
(ii) Gastos com resgates de vidas, substituição de tripulantes, desvio de rotas para salvamentos, quarentenas;
(iii) Perdas de propriedade a bordo da embarcação (danos, sumiço ou recebimento de quantidades inferiores);
(iv) Poluição;
(v) Remoção de destroços;
(vi) Colisão que cause avarias ou perda de cargas;
(vii) Colisão que cause avaria,de até ¼, do casco da embarcação (Nota: os ¾ restantes normalmente são cobertos pelas apólices de seguros tradicionais comercializadas no mercado);
(viii) Colisão ou choque com objetos fixos ou flutuantes (Ex vi:Cais, Docas, Portos, Equipamentos ou Instalações Portuárias);
(ix) Rebocagem;
(x) Custos de honorários advocatícios.
Além das coberturas acima, existem clubes que conferem cobertura adicional de frete, demurrage (sobre-estadia) e defesa “freight, demurrage and defense -FD&D”, acobertando também o pagamento de custos e assistência jurídica em disputas relacionadas a essas situações.
Os clubes também oferecem uma ampla gama de serviços aos seus membros tais como experts para a regulação de sinistros, obtenção de declarações e certidões marítimas e portuárias locais, assistência local, acesso a estudos, treinamentos e relatórios de prevenção de sinistros entre outros.
Geralmente são excluídos de cobertura os riscos de guerra, as perdas financeiras do armador segurado, os riscos já segurados por empresas de seguros e aqueles advindos de comércio ilegal ou altamente perigoso como o nuclear.
Disposições normativas brasileiras referente ao P&I podem ser encontradas, por exemplo, nas Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) que versam sobre embarcações empregadas na navegação em mar aberto, notadamente, na parte de vistorias e perícias NORMAM nº01 , assim como na NORMAM nº 04 que dispõe sobre operação de embarcações ou plataformas estrangeiras em águas jurisdicionais brasileiras (excetuadas as empregadas em esporte e/ou recreio), visando à segurança da navegação, à salvaguarda da vida humana e à prevenção da poluição no meio aquaviário.
Na NORMAM nº04, além das exigências feitas para as vistorias e perícias, também se apresenta necessária a comprovação de cobertura de P&I nos casos de solicitação de autorização para operar em Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB) e para obter-se o Atestado de Inscrição Temporária de embarcação estrangeira (AIT) no Brasil.
Diante das exigências normativas acima, verifica-se a importância da contratação de coberturas de P&I para essas embarcações, contudo, como contratá-las se, até hoje, não existem clubes de P&I no Brasil?
A resposta a essa questão perpassa pela excepcional permissão de contratação junto a entidades domiciliadas no exterior, na forma dos artigos 6º da Resolução CNSP Nº 197/2008 e artigo 20 da Lei Complementar nº 126/2007 que autorizam a contratação de cobertura de riscos para os quais não exista oferta de seguros no Brasil, desde que sua contratação não represente infração à legislação vigente.
Cumpre asseverar que a contratação de P&I não substitui a necessidade de contratação dos seguros obrigatórios quando aplicáveis,logo, não dispensa o seguro obrigatório de transporte do dono da carga (embarcador pessoa jurídica), tampouco o seguro obrigatório de responsabilidade civil do próprio transportador (Decreto nº 61.867/1967) exigidos no Brasil.
Para melhor visualização, tomemos um caso ilustrativo básico: um armador X, ao iniciar o transporte de cargas de terceiros de um porto originário da China para o Brasil acaba por colidir, acidentalmente,em outra embarcação que se encontrava regularmente atracada no porto chinês. Com a colisão,uma valiosa carga a ser enviada ao Brasil cai ao mar, tornando-a irrecuperável. Além disso a colisão danifica sua própria embarcação e aquela com a qual colidira. Nesse sinistro hipotético, o dono da carga e o proprietário da embarcação atingida,ou suas respectivas seguradoras em sub-rogação, poderão reclamar indenizações substanciais junto ao armador X que deu causa ao sinistro.
Conquanto X tenha contratado seguro marítimo e P&I, poderá acobertar-se dos pleitos indenizatórios acima descritos que contra ele poderão ser interpostos,tanto no que respeita à responsabilização por danos causados à carga transportada (perda de carga de terceiros), como para os danos causados ao navio em que colidiu (danos a terceiros). Da mesma forma, no que se refere ao dano afeto ao seu próprio navio, uma vez que o seguro de casco e maquinário normalmente confere cobertura de apenas ¾ do dano verificado, o ¼ restante também poderia ser passível de cobertura pelo P&I, mantendo, assim, o armador X indene de todos esses prejuízos incorridos pelo sinistro em questão.
Ante todo o exposto, verifica-se que as coberturas de P&I apresentam relevância, servindo como um complemento das coberturas securitárias comercializadas pelas seguradoras atuantes nesse ramo, melhor resguardando, assim, proprietários e armadores das consequências patrimoniais decorrentes das responsabilidades civis a eles imputáveis quando da regular consecução de sua atividade empresarial de transporte marítimo.
Sobre o autor
Bernardo Albanesi, advogado especializado em seguros na indústria do petróleo