EXCLUSIVO – A expansão do trabalho autônomo no Brasil está alterando não apenas a dinâmica do mercado de trabalho, mas também a forma como milhões de profissionais encaram planejamento financeiro, proteção social e aposentadoria. Dados do IBGE mostram que o país já soma mais de 7 milhões de trabalhadores formalizados como pessoa jurídica e cerca de 15 milhões de microempreendedores individuais (MEIs), o que representa um crescimento de 145% entre 2020 e 2025. Mais do que um fenômeno conjuntural, trata-se de uma mudança estrutural, com efeitos diretos sobre previdência, seguros e gestão do risco financeiro individual.
Esse movimento vem acompanhado dados do Ipea em que a renda média dos trabalhadores por conta própria tem crescido em ritmo superior à dos empregados com carteira assinada. A migração de profissionais qualificados como médicos, engenheiros, especialistas em tecnologia e prestadores de serviços especializados, para modelos mais flexíveis de contratação elevou o potencial de ganho, mas também ampliou a exposição à volatilidade. Sem FGTS, 13º salário ou contribuições automáticas ao INSS, esses profissionais passaram a lidar diretamente com um desafio central: como transformar renda variável em segurança financeira no longo prazo.
Nesse contexto, a previdência complementar voltou ao centro do debate. Dados do Ministério da Previdência indicam que o sistema administra atualmente cerca de R$ 3,02 trilhões em recursos, o equivalente a aproximadamente 25% do PIB brasileiro e paga mais de R$ 100 bilhões por ano em benefícios. As entidades fechadas de previdência complementar (EFPCs) respondem por cerca de 95% desses pagamentos, evidenciando o peso do modelo coletivo na sustentação do sistema previdenciário nacional.
Para Wagner Oliveira, gerente de Negócios Cooperativos da Quanta Previdência, o crescimento do interesse dos autônomos pela previdência complementar reflete uma mudança profunda na relação entre trabalho, renda e proteção social. “O Brasil está formando uma geração de profissionais mais independentes, com maior autonomia e capacidade de renda, mas sem os amortecedores tradicionais da CLT. Isso exige novas formas de organização financeira e de planejamento do futuro”, afirma.
Segundo ele, o principal obstáculo para o autônomo não é apenas a falta de renda, mas a irregularidade do fluxo financeiro. “A renda variável exige disciplina e isso é um desafio real. Muitos até querem poupar, mas se frustram quando não conseguem manter constância nos meses mais difíceis”, explica. Por isso, a flexibilidade se tornou um elemento central dos planos oferecidos no ambiente cooperativo. O participante pode reduzir, pausar ou retomar contribuições conforme o momento financeiro, além de realizar aportes adicionais e até programar contribuições automáticas, criando mecanismos práticos de disciplina ao longo do tempo.
Essa flexibilidade é decisiva para evitar o abandono ao longo da carreira, especialmente em um mercado marcado pela rotatividade entre regimes como PJ e MEI. Estudos sobre o futuro do trabalho indicam que o trabalho por projetos, a pejotização e a informalidade qualificada tendem a se intensificar, alterando renda, prioridades e rotinas financeiras. “Sem flexibilidade, qualquer mudança de renda vira uma ruptura. Com flexibilidade, o plano atravessa os diferentes ciclos da carreira”, diz.
Além da estrutura do produto, a educação financeira e previdenciária aparece como outro pilar relevante. Para Wagner, muitos autônomos ainda tratam a previdência como algo distante ou excessivamente complexo. “Quando o profissional não consegue enxergar a contribuição de hoje como renda futura, a decisão fica abstrata”, afirma. Nesse sentido, a estratégia passa por uma jornada contínua de relacionamento, com comunicação recorrente, simulações de renda futura, conteúdos educativos e acompanhamento ao longo do tempo, reduzindo a chance de abandono de um planejamento iniciado anos antes.
O risco de não planejar é elevado. Dados oficiais mostram que cerca de 70% dos aposentados do INSS recebem apenas um salário-mínimo. Para trabalhadores autônomos, cuja contribuição ao regime público tende a ser intermitente e, muitas vezes, baseada no piso, o impacto futuro pode ser ainda mais severo. “Sem previdência complementar, o caminho costuma ser adiar a aposentadoria, continuar trabalhando por necessidade ou depender da família”, alerta Wagner. “A previdência cria uma segunda fonte de renda planejada, construída ao longo do tempo, especialmente aproveitando os meses de maior faturamento.”
Do ponto de vista de investimentos, a volatilidade da renda não exige planos específicos para autônomos. Segundo o executivo, a estrutura dos planos já contempla diferentes perfis de investimento, adequados a distintos níveis de risco e horizontes de tempo. “Estamos falando de acumulação de longo prazo. A escolha do perfil e a disciplina de contribuição têm mais impacto do que oscilações pontuais da renda”, afirma.
Outro diferencial destacado é a governança das entidades fechadas. Diferentemente de bancos e seguradoras, as EFPCs não têm fins lucrativos e operam exclusivamente em benefício dos participantes. “Não há pressão por resultado comercial nem remuneração de acionistas. Isso permite decisões mais técnicas, prudentes e alinhadas ao longo prazo”, diz. A estrutura de conselhos, comitês, auditorias e fiscalização cria camadas adicionais de proteção, reduzindo riscos operacionais e financeiros.
A eficiência do modelo também impacta diretamente o resultado final. “Todo ganho de escala ou eficiência retorna para o plano, seja na forma de taxas menores ou maior preservação do retorno líquido”, explica Wagner. Ao longo de décadas de acumulação, essa diferença tende a se traduzir em patrimônio maior e renda futura mais previsível.
Apesar do crescimento mais visível entre profissionais de renda mais alta, Wagner avalia que o modelo cooperativo não precisa se tornar elitizado. “A inclusão começa na porta de entrada. Com contribuições mínimas acessíveis e foco em disciplina, a previdência pode fazer parte da cultura financeira desde cedo”, afirma. Hoje, mais de 35 mil crianças já participam de planos administrados pela Quanta, sinalizando uma mudança gradual na relação das famílias com o planejamento de longo prazo.
A globalização do trabalho também não altera a lógica da previdência complementar. O aumento de brasileiros que prestam serviços para o exterior ou recebem em moeda estrangeira não exige adaptações estruturais nos planos. “A previdência é um instrumento de acumulação de longo prazo, independentemente da origem da renda. O que muda é a possibilidade de aproveitar momentos favoráveis de câmbio para realizar aportes adicionais”, observa.
Embora historicamente associado a uma atuação regional, o cooperativismo também vem se adaptando ao perfil do trabalhador digital. A jornada de adesão, acompanhamento e relacionamento com o participante pode ser totalmente digital, permitindo atender profissionais que trabalham de qualquer lugar do país ou do mundo, sem perder o vínculo característico do modelo cooperativo.
Para Wagner Oliveira, o avanço da previdência complementar entre autônomos é um movimento estrutural, alinhado à transformação do mundo do trabalho. “A previdência deixa de ser vista apenas como investimento e passa a ser uma ferramenta de organização da vida futura. Quando o plano respeita a realidade do profissional independente, ele não abandona o projeto, ele cresce junto com a própria trajetória”, conclui.
Nicholas Godoy, de São Paulo.




