O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou em abril o julgamento sobre a Lei 14.454/2022 que definiu que o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deve ser uma referência e não lista fechada. Os diversos atores diretamente envolvidos já se posicionaram em defesa do seu ponto de vista. Aqui, reafirmo meu interesse e reflexão sobre o tema no que se refere a sustentabilidade econômica para o mercado de saúde suplementar.
A lei gera insegurança e judicialização. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 50% das ações em saúde buscaram deferimento de procedimentos sem nenhuma comprovação de efetividade. Sem razoabilidade, a lei traz desequilíbrio ao sistema, podendo gerar um verdadeiro colapso que resultará, em última instância, em despejo de uma massa de 52,6 milhões de brasileiros na saúde pública.
O fato é que a relação entre consumidor e empresa privada de serviços de saúde, seja antes ou depois da Lei º 9.656 de 1998, sempre foi firmada por meio de um contrato que define as obrigações e os deveres de ambas as partes. Tanto o consumidor espera ter atendidas as coberturas contratadas, bem como o prestador aguarda receber os valores do consumidor em conformidade à cobertura ofertada. O contrato de plano de saúde tem natureza securitária, isso porque suas bases econômicas se equiparam às do contrato de seguro pautado por um cálculo atuarial. Ambos são constituídos de forma solidária entre seus beneficiários, ligados pelo mutualismo decorrente da característica coletiva que tais acordos possuem.
Destaco aqui o papel primordial do profissional atuário na responsabilidade de precificar o risco, considerando nesta difícil equação, diversas variáveis como: faixa etária, gênero, área de abrangência, rede de assistência, dentre outras informações.
Observa-se que a Lei 14.454/2022 e a consequente mudança de rol taxativo para exemplificativo resultou em aumento da judicialização. Vale ressaltar que não cabe à iniciativa privada critérios tão abrangentes, ou exigir das operadoras de planos privados uma assistência à saúde acima do que se impõe ao próprio Estado, não tendo, portanto, o dever de universalidade que figura como princípio fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS) – art. 196, caput, da Constituição Federal.
Ao buscar no sistema judiciário deferimento para procedimentos não contemplados no rol da agência reguladora, o beneficiário pratica a quebra contratual. Acrescenta-se os pedidos de internações em hospitais de alto custo e os medicamentos milionários, muitos sem a devida comprovação científica e cobertura na saúde pública de saúde brasileira. A quebra deste equilíbrio contratual possibilita que a operadora venha a ser obrigada a abarcar custos não previstos na base de cálculo do risco do contrato, transformando a relação em um negócio jurídico incerto, de risco indeterminado. A conta, cada vez mais elevada é rateada entre toda a carteira de usuários. A análise criteriosa do atuário acaba sendo substituída por decisões judiciais quando não amparadas tecnicamente.
Como precificar o que não tem limite? Como calcular o custo de um produto ou serviço que, à revelia, pode sofrer ajustes futuros não previstos e com grande impacto econômico-financeiro para a empresa prestadora refletindo, inclusive, na sua sustentabilidade? Na prática seria o mesmo que comprar em uma concessionária um automóvel popular e exigir a retirada de um modelo de custo maior. Cabe judicializar tal situação? E se analisarmos os contratos de seguro de carro ou imóvel. Há ampliação do direito do cliente que venha a desonrar as cláusulas estipuladas em contrato, assinadas de comum acordo, sem a devida reavaliação dos riscos e custos?
Diante ao desafiador cenário da judicialização que há anos o mercado da saúde suplementar enfrenta é aceitável em um processo a solicitação de vistas ou revisão dos valores arcados pelo usuário, a título de transparência do cálculo atuarial. Porém, atribuir ao usuário uma benesse ao qual ele não pagou para ter direito a usufruir coloca em risco toda a cadeia de saúde privada. O segmento já padece de uma realidade extremamente dura no Brasil: casos de uso não racional do plano de saúde, prejuízo milionários com as fraudes dos reembolsos, tecnologia com custo altíssimo, envelhecimento da população, inflação da saúde galopante, dentre outros.
É urgente sensibilizar o Judiciário, o Congresso, os setores Jurídicos do Sistema Unimed e das empresas que atuam na saúde suplementar sobre a necessidade de nos apropriarmos dessa ferramenta, ou seja, o cálculo atuarial. Tenho conhecimento que o Instituto Brasileiro de Atuária dispõe de uma equipe técnica amplamente capacitada e habilitada a construir a fundamentação adequada para subsidiar os processos. Saliento que não desejo, em momento algum, modificar as deliberações dos magistrados. O setor precisa lutar pelo protagonismo dos profissionais atuariais, bem como das sociedades e entidades da área da saúde que atuam respaldadas em evidências e estudos técnicos e científicos. Somente esse caminho evitará as situações discrepantes, desproporcionais vivenciadas diuturnamente.
Nesse contexto proponho uma maior aproximação do Judiciário e da Atuária no sentido de melhor amparar as decisões. Com assento permanente nos Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário (NatJus), por exemplo, tais profissionais de alto gabarito técnico e experiência poderiam auxiliar a análise de pedidos que envolvam procedimentos médicos, bem como fornecimento de medicamentos. Apesar dos avanços na profissão e mesmo diante de toda a importância do trabalho desenvolvido, o atuário ainda passa despercebido em alguns casos, onde ainda existe um conflito de identidade, ou pior quando não sabem de fato o seu real papel dentro das operadoras, por incrível que pareça.
*Joé Gonçalves Sestello é Diretor-Presidente da Unimed Nova Iguaçu.