EXCLUSIVO – Um carro que não é apenas um carro. É parte da história do Brasil, do esporte e da memória coletiva de um dos maiores atletas que já vimos. O McLaren MP4/6, pilotado por Ayrton Senna e com o qual o tricampeão conquistou algumas vitórias em 1991, será leiloado com lances que podem chegar a US$ 15 milhões (R$ 80 milhões na cotação atual).
A cifra, por si só, já impressiona. Mas levanta uma pergunta ainda mais curiosa: como se segura um bem como esse? Um item que mistura valor material, simbólico e que dificilmente poderia ser “substituído” em caso de sinistro. “Um carro como esse é mais do que um automóvel, é uma obra de arte sobre rodas, um símbolo da história do esporte e da engenharia. O seguro precisa refletir esse valor cultural e emocional”, explica Ricardo Minc, diretor de Esportes, Entretenimento e Espécies da Howden Group.
Segundo Minc, o ponto de partida de uma apólice desse tipo é o conceito de “agreed value” ou valor acordado. Diferente do seguro tradicional, em que a indenização é calculada com base no preço de mercado, aqui o valor é previamente definido entre o proprietário e a seguradora. “O valor é informado pelo proprietário e validado por nossos subscritores, que consultam bases de mercado, especialistas e resultados de leilões”, explica. “Em bens de relevância histórica, como esse carro pilotado pelo Senna, o valor reflete não só o aspecto físico, mas também o valor simbólico e cultural”.
Em muitos casos, o próprio resultado do leilão serve como referência para o valor segurado. Quando há dúvida sobre a coerência da quantia declarada, pode ser solicitado um laudo de avaliação. Minc ressalta que, na maioria das vezes, os números são compatíveis com o histórico de mercado.
Seguro de uma obra e não um simples automóvel
Embora seja tecnicamente um carro, itens como estes não são tratado como veículo automotivo. “Ele não está destinado ao uso diário, portanto não há o risco de circulação. O tratamento dado é o mesmo de uma obra de arte ou item de coleção”, ressalva Minc.
As coberturas são do tipo All Risks, ou seja, protegem contra todos os riscos não expressamente excluídos, como roubo, furto, incêndio, danos acidentais, fenômenos naturais e até acidentes durante exposição, manuseio ou transporte.
A Howden desenvolveu, em parceria com a EZZE Seguros, um produto específico para veículos clássicos e de coleção, com a mesma lógica das apólices de arte. É possível incluir cobertura para circulação (road risk), mas apenas em casos de carros que ainda rodam. “No caso do carro de Senna, essa cobertura não faz sentido. É um bem histórico, voltado exclusivamente à preservação e exposição”, afirma.
O transporte de um item de tamanha raridade é uma operação de risco extremo e de alto custo. Cada movimento precisa ser comunicado previamente à seguradora e executado por empresas especializadas em transporte de bens de valor. “O veículo deve viajar em compartimento fechado, rastreado e climatizado, com equipe técnica habilitada para o manuseio”, detalha. “O transporte é o momento mais crítico. Por isso, o histórico e a experiência da transportadora são fatores decisivos na avaliação do risco”, explica Minc.
A apólice é ajustada para refletir toda a logística envolvida, seja ela aérea, rodoviária, marítima ou multimodal onde cada trecho é tratado como uma operação independente dentro da cobertura geral. Como em qualquer seguro, o prêmio depende do risco. No caso de bens únicos, o cálculo envolve muito mais do que o valor declarado. “Além do valor segurado, pesam a frequência de transporte, o nível de exposição ao público e as condições do local de guarda”, conta. “Veículos mantidos em coleções privadas, com controle ambiental e segurança reforçada, têm custo menor do que os que participam de exposições e eventos”.
Outro ponto relevante é o histórico de conservação. Bens restaurados de forma inadequada ou com peças substituídas sem rastreabilidade podem ter o seguro recusado ou encarecido, já que isso afeta a autenticidade e o valor histórico.
Quando o sinistro acontece
No improvável caso de um sinistro (perda total, dano irreparável ou roubo), o pagamento é direto e sem disputas. “A indenização segue o conceito de agreed value: o montante é fixado antes do início da cobertura”, afirma o diretor da Howden.
Em caso de dano parcial, o seguro cobre o restauro completo, realizado por profissionais especializados. “O processo é conduzido com o mesmo cuidado de uma obra de arte. E, quando o restauro não consegue preservar a originalidade, pode haver indenização adicional por depreciação”, explica.
O objetivo é garantir que o patrimônio histórico continue existindo, mesmo que parcialmente reconstruído, mantendo o seu valor cultural que o torna insubstituível.
Para manter a cobertura válida, o proprietário deve seguir uma série de exigências técnicas e contratuais. É obrigatório armazenar o bem em local fechado, com controle de temperatura e umidade, além de sistemas de alarme e vigilância.
Toda movimentação (transporte, exposição, restauração) precisa ser previamente comunicada ao corretor. “O seguro de um bem histórico não é apenas proteção financeira; é também uma parceria de gestão de risco. A seguradora participa ativamente das decisões que envolvem o bem”, afirma.
Mais do que cifras milionárias, o seguro de uma relíquia como um dos carros de Ayrton Senna é uma forma de preservar um legado. “É o mesmo cuidado que aplicamos a uma escultura ou a um quadro de Candido Portinari: garantir que o patrimônio possa ser preservado, exposto e apreciado com segurança”, conclui.
Nicholas Godoy, de São Paulo




