EXCLUSIVO – A economia espacial deixou de ser ficção científica. Hoje, foguetes decolam quase toda semana, constelações de milhares de satélites orbitam a Terra e o turismo fora do planeta começa a ganhar forma. Mas, em meio a essa corrida movida por empresas privadas, com investimentos bilionários e riscos tão altos quanto a altitude das missões, quem indeniza fora de órbita?
De acordo com o advogado Guilherme Charneski Carneiro, especialista em seguros do escritório Poletto & Possamai, o crescimento acelerado do mercado de seguros espaciais reflete a transformação estrutural do setor. “O espaço deixou de ser domínio exclusivo de governos para se tornar parte da economia global. O que vemos é uma democratização do acesso e uma diversificação das aplicações comerciais, que vão de comunicações por satélite ao turismo espacial”, explica.
Relatórios internacionais, como o da Verified Market Reports, projetam uma taxa composta de crescimento anual (CAGR) de 16,7% entre 2022 e 2032. A receita global deve saltar de US$ 4,5 bilhões em 2024 para US$ 10,2 bilhões até 2033. Esses números demonstram o apetite crescente por proteção financeira diante de investimentos que ultrapassam centenas de milhões de dólares por missão.
Hoje, os principais contratantes de seguros espaciais são grandes operadores privados, como a Starlink (SpaceX), OneWeb e empresas de telecomunicações com satélites próprios. A SpaceX por exemplo, é majoritariamente auto-segurada em seus satélites da constelação Starlink, mas mantém coberturas para os lançamentos e a fase inicial em órbita. Já startups como a Planet Labs operam constelações de centenas de CubeSats e demandam soluções mais criativas, como os chamados “seguros de enxame”, que protegem a missão mesmo com a perda parcial de unidades.
Governos, tradicionalmente auto-segurados, também começam a buscar coberturas específicas para projetos em parceria com o setor privado. No Brasil, a Visiona Espacial, joint-venture entre Embraer e Telebras, é um dos exemplos dessa tendência, com mais de 100 projetos em andamento, desde a agricultura até o ministério de defesa.
O seguro espacial cobre todo o ciclo de vida de uma missão, desde a fabricação até a reentrada. A fase de lançamento é a mais cara e crítica, pois concentra os riscos mais imprevisíveis e representa a maior parcela dos prêmios. O período de pré-lançamento, que envolve transporte e integração do satélite ao foguete, também é sensível, com equipamentos que podem valer centenas de milhões de dólares.
Já em órbita, o desafio é outro, ou seja proteger ativos que permanecem expostos por até 15 anos a radiação solar, tempestades geomagnéticas e micrometeoroides. Agora, com novas exigências de sustentabilidade, cresce a importância da fase final, que normalmente acontece em órbita, quando as seguradoras precisam considerar o custo e o risco do descarte adequado de satélites para evitar a geração de detritos espaciais.
Quando o lixo espacial se torna um problema
A colisão entre os satélites Iridium-33 e Cosmos-2251, em 2009, ainda é lembrada como um ponto de virada. Desde então, a densidade de detritos orbitais aumentou a níveis preocupantes, levando as seguradoras a desenvolver novas metodologias de precificação baseadas em risco orbital.
Segundo Guilherme, “os prêmios agora consideram a densidade de detritos em cada órbita. Missões em regiões mais congestionadas pagam mais, enquanto aquelas com planos claros de mitigação podem obter descontos na contratação”. Algumas seguradoras já oferecem incentivos para satélites com capacidade de manobra e rastreabilidade aprimorada, enquanto outras aplicam exclusões para danos causados por testes anti-satélite, que se tornaram uma preocupação crescente.
O monitoramento em tempo real também passou a integrar o modelo securitário. Parcerias entre seguradoras e empresas de rastreamento, como a LeoLabs, permitem avaliações dinâmicas de risco e ajustes contínuos nas apólices.
O espaço não é mais apenas físico, ele é também digital. O ataque cibernético à rede KA-SAT da Viasat, em 2022, poucas horas antes da invasão da Ucrânia, expôs a vulnerabilidade das infraestruturas orbitais. Desde então, seguradoras como Axa e Lloyd’s of London passaram a oferecer coberturas específicas contra ciberataques a satélites, incluindo interrupção de serviço, perda de dados e custos de restauração de sistemas.
Outro foco de inovação é o congestionamento orbital, que motivou a Agência Espacial do Reino Unido (UK Space Agency) a propor, em 2023, um modelo de “limites variáveis de seguro” baseado em um quociente de sustentabilidade. Missões consideradas mais seguras e sustentáveis podem pagar menos, enquanto operações de alto risco enfrentam prêmios mais elevados.
“Essas práticas mostram como o seguro assume um papel quase regulatório, incentivando comportamentos sustentáveis e penalizando atividades que ampliem os riscos orbitais”, afirma o advogado.
O Brasil entra na corrida
No cenário nacional, a Lei nº 14.946/24, conhecida como Lei Geral do Espaço, inaugurou um marco moderno para o setor. Ela exige que operadores privados comprovem capacidade financeira, geralmente através de seguros de responsabilidade civil, antes de realizar missões espaciais. “O Brasil tem potencial para se tornar um player competitivo nesse mercado. Nos últimos cinco anos, o seguro espacial faturou mais de R$ 250 milhões, sem pagamento de indenizações no período, o que demonstra um ambiente de baixo risco”, destaca.
O país também conta com vantagens estratégicas. O Centro Espacial de Alcântara, no Maranhão, por estar próximo à linha do Equador, oferece economia significativa de combustível e atrai o interesse de operadores internacionais. Um lançamento orbital está previsto para novembro de 2025, consolidando a posição brasileira como alternativa viável para missões comerciais.
A Visiona, em parceria com a Agrotools, prepara ainda o lançamento de um seguro paramétrico para gestão de riscos climáticos, com base em dados de sensoriamento remoto, um produto que mistura inovação tecnológica e inteligência satelital para proteger a agricultura.
A regulamentação do seguro espacial também se apoia em tratados internacionais. O Decreto nº 71.981/73 promulgou no Brasil a Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, que define um sistema dual: responsabilidade objetiva para danos na Terra e responsabilidade por culpa para incidentes no espaço.
Isso significa que, caso um satélite privado cause danos, o Estado de lançamento responde internacionalmente e depois busca ressarcimento junto ao operador, que por sua vez, transfere o risco às seguradoras. “É um sistema funcional, mas que precisa ser modernizado diante da presença de milhares de satélites privados em órbita”, avalia Charneski.
Ele acrescenta que a consolidação do mercado brasileiro depende da harmonização entre o marco regulatório nacional e as práticas globais, além da formação de profissionais especializados em direito espacial e seguros técnicos. “Ainda não temos jurisprudência no Brasil sobre contratos de seguro espacial. É uma área nova, que exige coordenação entre Susep, AEB e ANATEL para evitar lacunas regulatórias”, esplica
O futuro das apólices fora da Terra
Com o avanço do turismo espacial e o planejamento de missões para a Lua e Marte, as seguradoras já testam modelos de apólices modulares, com coberturas independentes para cada fase(lançamento, trânsito, operação planetária e retorno).
Missões como a Inspiration4, primeira civil da SpaceX e o projeto Artemis Lunar Gateway da NASA servem de laboratório para essa nova geração de produtos. Os desafios vão desde o atraso de comunicação de até 24 minutos com Marte até a ausência de dados históricos que sustentem modelos atuariais confiáveis.
“Se eu tivesse que segurar uma missão para Marte amanhã, o que mais me preocuparia seria a impossibilidade de fazer uma vistoria prévia”, brinca. “Mas, juridicamente, o que mais tira o sono é a jurisdição. Se algo der errado em Marte, qual tribunal teria competência? Estamos literalmente escrevendo as regras conforme exploramos novas fronteiras”.
Mais do que transferir risco, o seguro espacial se tornou um instrumento de governança e inovação. Ao financiar missões e exigir práticas responsáveis, ele ajuda a moldar o comportamento de operadores, startups e governos. Para Charneski, “as seguradoras estão assumindo um papel regulador indireto, promovendo comportamentos socialmente desejáveis, mesmo na ausência de normas específicas”.
Nessa nova era da economia orbital, o seguro é tanto escudo quanto bússola: protege investimentos de bilhões e, ao mesmo tempo, orienta o rumo de uma indústria que redefine o conceito de fronteira humana. E, como resume o advogado, “o futuro da exploração espacial dependerá da nossa capacidade de compreender os riscos e de segurar o desconhecido sem perder a visão de longo prazo”.
Nicholas Godoy, de São Paulo.




