A inflação oficial no Brasil acumulada nos últimos 12 meses foi de 2,71%. Todavia, o índice médio de reajustamento das mensalidades dos planos de saúde no mês de julho foi de 46%. Como justificar essa gritante discrepância, se não se trata de uma relação regulada pelo mercado, pela lei da demanda, mas, sim, pelo Estado, por meio da ANS? O fenômeno se afigura ainda mais incompreensível pelo fato da Agência ter estabelecido um teto máximo de 13,55% de reajustamento para o período, o que já representaria um reajuste de 500% em relação ao índice inflacionário oficial do período.
Ocorre que a ANS impõe ao mercado um teto de reajustamentos apenas para os planos individuais, os quais albergam apenas 9,4 milhões de brasileiros, o que representa apenas 19% do mercado suplementar de saúde. Os outros 38,3 milhões de brasileiros estão reunidos em contratos coletivos ou de livre adesão, cujos reajustamentos estão fora do controle estatal da agência reguladora, pois se submetem ao regime da livre negociação.
Essa livre negociação, todavia, sempre foi unilateral, pois se dá entre as operadoras e as intermediadoras, debate do qual o consumidor não participa e sobre cujos argumentos sequer tem conhecimento. Em grupos dessa tal livre negociação, há consumidores que sofreram, em julho, reajustes de até 93%. Lembramos que a inflação oficial do período foi de 2,71%, que os produtos farmacêuticos experimentaram um inflacionamento de 5,12% e os serviços médico hospitalares de 4,31% no mesmo período.
As operadoras se defendem, dizendo que não é apenas o reajustamento dos preços de produtos, serviços e insumos que influenciam em suas planilhas, mas sobretudo a maior utilização dos planos pela população, a chamada sinistralidade e o envelhecimento dos usuários. Tudo isso faz sentido e deve ser levado em conta, a fim de preservar o equilíbrio econômico dos contratos e a própria viabilidade da atividade econômica. Todavia, todos esses fatores são também planilhados perante a ANS, nos contratos individuais, para se chegar ao teto máximo de reajustamento autorizado.
Como entender, então, tamanha discrepância entre as planilhas? Se, nas planilhas apresentadas à ANS, chegou-se a um teto justo e máximo de 13,55%, como se pode justificar que nos planos coletivos, chegou-se a superar, em alguns casos, os 93% e que o reajustamento médico ficou em 46%? Sabe-se bem que nos planos coletivos a sinistralidade é menor que nos individuais, visto que o risco é diluído em uma massa heterogênea, o que deveria, estatisticamente, gerar reajustamentos menores.
Mesmo nos planos individuais, a ANS autoriza o teto de reajuste, fundamentada em planilhas fornecidas unilateralmente pelas operadoras e, portanto, nada confiáveis. Tais documentos não são auditados pelo órgão regulador. Se isso ocorre perante o órgão oficial, o que não ocorrerá nos planos coletivos, onde a Agência não se imiscui e a cujos números o consumidor não tem acesso?
Trata-se de um mercado que, apesar de haver perdido mais de 2,7 milhões de clientes nos últimos dois anos – justamente pela inacessibilidade dos preços, ainda movimenta R$ 180 bilhões por ano, ou seja, 51,26% a mais que todo o Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse ano, o orçamento do SUS para cuidar de toda a população brasileira é de R$ 119 bilhões, enquanto que o sistema suplementar, para cuidar de apenas 47 milhões de usuários, dispõe de R$ 180 bilhões. Não se olvide que toda essa fortuna que faz girar a máquina do sistema suplementar também tem origem em dinheiro público, porquanto seja advindo de renúncia fiscal, visto que 100% dedutível do Imposto de Renda.
Como justificar esse poder político, além do econômico? Nas eleições de 2014, o setor doou R$ 54,9 milhões para 131 candidatos, dos quais 60 foram eleitos, entre presidente da República, três governadores, três senadores, 29 deputados federais e 29 deputados estaduais. Com 29 deputados federais, o setor tem na mão a sétima maior bancada, perdendo apenas para o PT, MDB, PSDB, DEM e PP. A tendência, gerada por essa influência, é que o setor fique ainda mais longe do poder regulador do Estado, visto que todos os projetos que tramitam pela Câmara visam a desregulamentar ainda mais o setor, deixando o consumidor à mercê da imposição unilateral do mercado.
O argumento da livre negociação nos planos coletivos ou nos contratos de adesão funda-se no fato de que nos planos coletivos, devido à massa envolvida, haveria maior poder de negociação do grupo frente à operadora. Se assim fosse, o reajustamento médico dos últimos doze meses não teria ficado acima dos 46%. Ocorre que o consumidor final, aquele que paga efetivamente a conta, não tem contato com a operadora. Quem negocia em seu nome e em nome de todos os membros do grupo, são as intermediadoras, entre as quais a Qualicorp exerce monopólio absoluto. Então, operadora e intermediadora, a portas fechadas, negociam os índices. Os consumidores são simplesmente informados e aqueles que não suportarem o reajuste simplesmente se desvinculam do grupo e vão engrossar as filas do SUS. Foi o que aconteceu com 2,7 milhões de brasileiros nos dois últimos anos.
O Sistema Único de Saúde (SUS), completa trinta anos. E, na verdade, é equivocadamente chamado de único, pois, a rigor, é híbrido, visto que o sistema suplementar também á irrigado com dinheiro público, oriundo da renúncia fiscal por parte da União no Imposto de Renda. Ambos os sistemas devem ser repensados. Se pretendemos realmente ofertar ao cidadão o acesso universal, devemos torná-lo digno, com investimentos condizentes de, no mínimo, mil dólares por habitante por ano (em 2018, os investimentos são de 573 reais por habitante). Boa parte desse dinheiro pode ser buscado no atual sistema suplementar, com o fim da renúncia fiscal. O sistema suplementar, por seu turno, deveria se tornar 100% privado – sem dedução no Imposto de Renda. Quem quer ter um atendimento privado que pague por ele. No regime atual, os usuários do sistema suplementar têm um atendimento privado, às custas dos demais contribuintes, visto que abate integralmente de seu Imposto de Renda.
Entendemos também que o próprio sistema suplementar, que deveria ser privado e não suplementar, deve ser reestruturado e somente funcionará de forma equilibrada se houver coparticipação do usuário. Exemplificando, para se entender melhor: se você for almoçar ou jantar num restaurante à la carte e demandar um filé ou uma picanha, não ocorrerá desperdício. Dificilmente haverá sobras de carne em seu prato. O mesmo se você for a uma pizzaria à la carte. Todavia, num sistema de rodízio, onde o pagamento é per capita, independente do consumo, o desperdício é gritante, tanto de carnes na churrascaria, quanto de massas na pizzaria. No rodízio de pizza, a partir do quarto pedaço, a maioria dos cientes comem somente a cobertura, desperdiçando totalmente a massa no prato. É assim nos planos de saúde. Se o usuário coparticipasse com, digamos, 20%, iria questionar ao médico a necessidade de determinados exames e procedimentos, notadamente os mais caros. Como, todavia, não sofrerá ônus algum, não se importa em repetir exames, por mais caros e desnecessários que possam ser.
Vivemos um ano eleitoral. Uma das grandes perguntas a ser feita aos candidatos é justamente essa. Como pretendem tratar essa delicada questão que mexe com a vida de todos os brasileiros. Com o fim do financiamento eleitoral pelas pessoas jurídicas, estima-se que o cartel das operadoras vai perder muita densidade eleitoral e muito poder de fogo dentro do parlamento. Há esperanças, portanto.
P.S.: Posição do Grupo Qualicorp, enviada pela sua Assessoria de Comunicação
“Em relação ao artigo “Saúde suplementar e eleições”, a Qualicorp esclarece que a acusação de “monopólio” é totalmente infundada. A contratação das administradoras de benefícios é completamente opcional, conforme previsto em regulação; ou seja, a administradora só conquista clientes quando é percebida pelos clientes como competitiva em termos de produtos, preços e serviços. Além disso, há mais de 100 administradoras de benefícios registradas na ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Quanto ao reajuste anual, a companhia esclarece que a negociação entre a operadora de saúde e a administradora de benefícios é reportada em detalhes às mais renomadas entidades de classe do país.”
Sobre o autor
Raul Canal, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem)