Ernesto Tzirulnik*
O Direito é uma experiência cultural. Embora haja formulações jurídicas que envolvam diversas culturas, como as conhecidas diretrizes europeias, cada país tende a produzir suas próprias leis.
A Europa, aliás, no que diz respeito ao contrato de seguro, vem dando fortíssima demonstração de que a produção das regras nacionais continua sendo uma importante tendência.
Ao contrário do que muitos pensam, a despeito das diretrizes comunitárias não se forma na União Europeia um corpo de regras de direito que incide igualmente nos seus diversos países, suprimindo a necessidade das leis nacionais. Prova disso é que foram recentemente editadas leis especiais de contrato de seguro em Portugal (2008), na Alemanha (2008) e na Itália (2005), entre tantas outras. Assim como acontece com as dezenas de Estados membros daquela comunidade, também na América Latina, os países regulam seus contratos de seguro com leis especiais, a mais recente sancionada no Peru, que vigorará a partir de maio de 2013.
Qualquer experiência cultural se desenvolve e deve ser compreendida numa circunstância nacional, com exigências e finalidades econômicas, sociais e políticas específicas. Por isso é fundamental que o intérprete do direito aplicado às relações securitárias brasileiras tenha pleno domínio da língua portuguesa, como a praticamos no Brasil, e a expertise do jurista brasileiro.
Por certo não é diferente em Portugal, na Alemanha, na Itália, no Peru, ou em qualquer outro país. Cada experiência jurídica deve ser conduzida segundo as determinantes da realidade em que incide.
É realmente necessário muito cuidado com o modo pelo qual nacionalizamos experiências jurídicas estrangeiras. Para alguns o Brasil seria mais evoluído em arbitragem do que a Alemanha porque o nosso Judiciário seria menos influente do que o árbitro quando do exame do cabimento da arbitragem. Não é verossímil essa dianteira nacional. Nem é certo de que se trate de uma coisa boa, ou que essa diferença com os alemães significa sermos realmente entrosados com a experiência da arbitragem.
O jurista português João Calvão da Silva conta que escreveu a respeito da responsabilidade civil do fabricante no direito português e que sua obra é muito citada no Brasil para sustentar soluções que a lei brasileira, entretanto, regula de forma diametralmente oposta à portuguesa. O apetite exagerado pela nota de rodapé estrangeira cega o jurista brasileiro e o impede de distinguir sua própria lei.
Não é apenas o direito brasileiro que tem particularidades. Os contratos de seguro brasileiros constituem igualmente uma experiência particular com semelhanças e dessemelhanças relativamente aos contratos praticados em outros países, sob influxo de fatores os mais diversos como a história política e o estágio de desenvolvimento.
O Brasil,a Inglaterra e o Egito têm conquistas securitárias diferentes.
A propósito, receio dizer que até alguns anos atrás a nossa se acomodava mais próxima da inglesa e agora despencou para a egípcia, por exemplo, no que diz espeito aos seguros de riscos de engenharia. O seguro do metrô de Londres garante “os interesses atinentes a todas as atividades relacionadas com o empreendimento”, o do metrô do Cairo garante “os danos físicos à perfuradora de túneis Cleópatra”.
Quem bem conhece o funcionamento desse ramo de seguro no Brasil, e ainda não perdeu a memória, sabe que, logo após haver sido sancionada a lei de abertura do mercado de resseguro, em 2007, o IRB, ainda monopolista, padronizou novas condições contratuais para todo o mercado (SEREG – 2428/2007).
Essas novas condições do seguro restringiram substancialmente os direitos conquistados pela sociedade brasileira ao longo de toda a sua história desenvolvimentista.
A teoria do interesse, que é potencializadora da cobertura de seguro, e que não se hesita em aplicar à apólice do metrô londrino, cede passo à estranha e restritiva expressão propriedade física tangível, aplicada à apólice do metrô egípcio. O regime de prorrogação do seguro até conclusão da obra mediante simples solicitação (Circular SUSEP 251/2004) é substituído pela necessidade de um procedimento mais complexo do que a própria subscrição original do risco. A rejeição do resseguro passa a valer com o simples silêncio do ressegurador e, assim, a reger-se contrariamente ao seguro, que se forma pela falta de recusa, rompendo a unidade do regime de aceitação tácita tão útil para a tranquilidade das relações securitárias, em prejuízo das seguradoras e dos segurados (Resolução CNSP 241/2011, art. 5º, § 3º)
Assim como a SUSEP, o IRB e o CNSP correm o risco de internar experiências estrangeiras nocivas, a doutrina, a jurisprudência e a lei também podem descambar nesse terreno.
Uma lei de contrato de seguro deve enfrentar essa questão e buscar a preservação de regime contratual mínimo capaz de promover a ordem público-econômica brasileira. Ela é instrumento de defesa da sociedade e deve propiciar a liberdade, a solidarização e a pacificação que o seguro, bem praticado, pode e deve produzir.
Caso, por exemplo, admita-se ad nutum a possibilidade de não incidência da regra do §2º do art. 4º da Lei de arbitragem para os seguros de grandes riscos, pressupondo a possibilidade de não serem contratos por adesão, ou caso se entronize a incidência do §1º do art. 2º, possibilitando o afastamento do direito local, estar-se-ia autorizando a exclusão do regime contratual mínimo do seguro brasileiro.
Em outras palavras, a convenção de arbitragem se transformaria num instrumento capaz de esvaziar a lei contratual, mesmo naquilo que ela, essa mesma lei, reputa essencial. Afinal, fica-se à mercê da interpretação sobre os significados da chamada ordem pública e dos bons costumes.
A lei peruana que vigorará a partir do mês que vem tomou o cuidado de esclarecer que é imperativa (art. 1º) e de impedir o afastamento da jurisdição e do direito que favoreçam o segurado e os beneficiários (art. 40, “a”). Além disso, proíbe o pacto de arbitragem antes da ocorrência de um sinistro (art. 40, “c”), admitindo-a após o sinistro “sempre e quando superem limites econômicos por faixas fixadas pela autoridade administrativa” (art. 46).
*Advogado em São Paulo, presidente do IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, coordenador da comissão elaboradora dos anteprojetos de lei de contrato de seguro (PL 3.555/2004 e PL 8.034/2010)