A ciclologística é um conceito recente que vem sendo utilizado para definir os serviços de entregas com uso de bicicleta e ou triciclo. Com as frequentes mudanças e desafios nas cidades – como a descarbonização dos transportes – e a redução dos empregos formais, a prática passou a ser vista como uma opção sustentável, econômica, além de geradora de oportunidades de trabalho e renda.
A população composta por entregadores-ciclistas, empregada formal ou informalmente nas atividades de ciclologística, vem crescendo anualmente. Entre 2019 e 2020, quando o setor de entregas cresceu mais de 94%, as cidades brasileiras viram triplicar o número desse tipo de profissional.
Para entender melhor o perfil do entregador-ciclista nas cidades brasileiras, analisar e compreender as suas necessidades e os aspectos relacionados à segurança viária desses profissionais, a Fundación Mapfre e o Laboratório de Mobilidade Sustentável (Labmob), do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (Prourb) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), se uniram para lançar o estudo “Segurança Viária e Ciclologística: desafios e oportunidades no Brasil”.
“A ciclologística tem sido uma grande oportunidade para as cidades fazerem uma transição energética no setor de entregas, fundamental para a vida urbana, mas desafios ainda permeiam a consolidação segura e responsável deste setor. Segundo dados publicados pelo Estado de S. Paulo em agosto de 2020, mais de 8 mil ciclistas morreram no trânsito na última década e o número de acidentes aumentou 45% em sete anos. A questão se torna ainda mais sensível quando falamos de entregadores-ciclistas, que não contam com proteções ou relações formais de trabalho”, explica Victor Andrade, coordenador do Labmob.
Com o estudo, o Labmob e a Fundación Mapfre pretendem identificar – de forma sistêmica — as questões que interpelam a segurança viária desses profissionais.“ A produção de materiais como este, que apresentam dados confiáveis sobre o trabalho dos entregadores-ciclistas e suas percepções em relação às cidade onde atuam, tem a capacidade de apoiar a formulação de políticas públicas que atendam às necessidades desses importantes profissionais no dia a dia das cidades brasileiras.”, analisa Fátima Lima, representante da Fundación Mapfre no Brasil.
A pesquisa foi baseada em cinco dimensões que fazem parte do chamado ecossistema da ciclologística e a partir da perspectiva de segurança viária: entregadores, bicicletas e equipamentos utilizados, empresas, espaço urbano, legislações e políticas públicas. A intenção foi dar “voz” a esses profissionais, buscando entender suas percepções diante de tais questões e fatores. Mesmo com a baixa presença de mulheres no universo de entregadores, o estudo pode levantar aspectos relacionados às perspectivas de gênero na rotina de trabalho.
O levantamento de dados foi realizado a partir da aplicação de diversos instrumentos metodológicos e as análises se deram por meio da triangulação de dados qualiquantitativos. Ao todo, participaram 336 entregadores de São Paulo, um número que representa cerca de 5% do total de entregadores-ciclistas da cidade, de acordo com dados do iFood Pedal. A falta de infraestrutura cicloviária, a falta de itens de proteção e o medo de sinistros são as principais questões levantadas pelos entregadores que participaram do estudo. “Apesar de ser uma atividade essencial e de extrema importância para termos cidades mais sustentáveis, a ciclologística ainda carece de políticas que favoreçam a circulação desses profissionais.”, conta Jessica Lucena, pesquisadora do Labmob.
Principais conclusões do estudo:
>> Público é formado majoritariamente por homens (92%) — com média de idade de 26 anos (76% até 30 anos) — que se autodeclaram pretos e pardos (68%) e trabalham cerca de 7 horas por dia.
>> 85% não possuem nenhum tipo de seguro, seja de saúde, vida ou odontológico, revelando a desassistência e vulnerabilidade desses profissionais.
>> 35% dos participantes do estudo já estiveram envolvidos em acidente de trânsito ou já presenciaram alguma ocorrência, impactando seus comportamentos e percepções.
>> Dos entregadores que participaram do estudo, 24 são mulheres e todas indicam medo de furto/roubo/assalto, de acidentes e da vulnerabilidade em relação aos veículos motorizados. Por meio dos dados, foi possível identificar que elas sofrem tanto sinistros como os homens.
>> A visão de uma cidade pouco amigável à sua dinâmica de trabalho, além de questões como falta de respeito, educação e desatenção com os ciclistas foram fortemente repetidas como causas dos acidentes de trânsito.
>> A infraestrutura viária urbana das cidades, que ainda não está totalmente adequada às atividades da ciclologística, também foi mencionada – especialmente a provisão de pontos de apoio que contribuam com a intensa rotina na rua e no trânsito.
>> Os profissionais toleram muitos riscos. A sensação de insegurança com relação ao trabalho, combinada aos riscos da profissão e falta de assistências encontradas, causam impacto direto na decisão de permanência na profissão. Foi levantado que poucos têm pretensão de seguir trabalhando como entregadores-ciclistas.
>> A atividade ciclologística ainda é pouco abordada no planejamento nacional urbano e de mobilidade. Ainda que hoje ela seja reconhecida como considerável oportunidade na transição energética e esteja presente em ações em prol da mobilidade ativa – atividade em que a pessoa usa a própria força como propulsora do veículo – ainda há poucas iniciativas e projetos voltados para o dia a dia desses profissionais e sua segurança.
Além da pesquisa com entregadores-ciclistas de São Paulo, também foram realizados estudos de caso com projetos específicos de Curitiba, Fortaleza e da própria São Paulo com a intenção de conferir à pesquisa uma compreensão abrangente que levasse em consideração as especificidades geográficas brasileiras, além de nuances regionais e outros tipos de entrega. O material completo do estudo “Segurança Viária e Ciclologística: desafios e oportunidades no Brasil” está disponível aqui.
“Se queremos falar de mobilidade sustentável, precisamos discutir segurança viária. Temos exemplos de países como Dinamarca e Holanda que transformaram a ciclologística em política nacional e modificaram o espaço urbano. A atenção com infraestrutura, leis de trânsito e com esses profissionais só oferece ganhos para um país — tanto ambientais e sociais, quanto econômicos.”, conclui Andrade.